segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O DESAPARECIMENTO DE ARMAS NO EXÉRCITO

Espingarda Semi-automática G3 de 7,62mm
O recente e aparente roubo de armas no Centro de Instrução de Comandos é, sem dúvida, um acontecimento muito grave.

É grave porque configura uma falha de segurança que não pode ser admissível em caso algum; porque pode ser indício de uma tipologia de crimes ainda inéditos ou a “subida de patamar” de outros já existentes e porque representa uma mancha séria na imagem e credibilidade do Exército e, por arrastamento, nas Forças Armadas.

Vamos tentar fugir a duas coisas, uma comum e outra menos: a primeira tem a ver com fazer aproveitamentos demagógicos de questões sérias e de atacar efeitos em vez de causas; a outra em falar de coisas que devem ter um carácter de confidencialidade (discorrer sobre procedimentos de segurança, por exemplo) ou substituir-me a quem, por dever de hierarquia ou de função, deve assumir posições oficiais – e por isso definitivas – sobre o assunto.

Vamos antes tentar discernir, sucintamente, as razões profundas (que davam uma tese!), que nos trouxeram a este ponto.

As consequências para as FAs, do 25 de Abril, do PREC, do 25 de Novembro de 75 e da “Descolonização”, foram muito traumáticas e gravosas.

Tendo-se descido muito baixo (no PREC) houve ainda energia para fazer uma recuperação rápida - efeito do princípio da física, da acção e reacção - mais rápida do que o resto do país (em razão das especificidades próprias da Instituição Militar (IM). Mas esta recuperação apenas se verificou, quase na sua plenitude, no âmbito digamos “material” da Instituição. Isto é, no restabelecimento da hierarquia e da disciplina, na organização, na melhoria das instalações, na doutrina e no treino. A “coisa” entrou nos carris.

Mas aquilo onde ficou longe de recuperar foi no seu âmbito digamos “espiritual” (a mais importante de todos), dado que os aspectos da ética, deontologia, confiança, lealdade, espírito de corpo e restantes virtudes militares, ficou muito por fazer. O golpes foram profundos e deixaram sequelas, que só o tempo e uma boa prática sanarão. As relações e a imagem entre as FAs e a Nação também sofreu e, por uma razão ou outra, acabou por deixar mágoas em todos os sectores da sociedade. O mesmo aconteceu com as relações político-militares: o conflito, o desajuste, o passo trocado e a desconfiança mútua, são uma constante dos últimos 30 anos.

As águas mornas e as declarações institucionais em que tudo se tem passado e tentado iludir os problemas, não resistem à análise mais sumária. A piorar as coisas em vez de se sanear as fileiras de quem se tinha portado mal durante o período revolucionário – e portado mal não tem a ver com ideologia política, mas sim com os preceitos da virtude e da honra – resolveu-se passar um pano por cima de tudo e meter tudo no mesmo saco, promovendo-se todo o mau comportamento a coronel ou sargento chefe/mor, e distribuindo-se subsídios a esmo. De facto as pessoas calaram-se, na sua grande maioria, as tensões aparentemente atenuaram-se, mas a injustiça, essa, permaneceu.

A injustiça revolta e desmoraliza. A IM, no seu conjunto, ficou gravemente ferida. Perdeu a capacidade de se dar ao respeito e quem não se dá ao respeito não será respeitado.

Passando-se as coisas assim, foi-se assistindo a uma guerra surda e de sombras, em que os políticos na sua avaliação (errada), acharam a IM dispensável em termos geopolíticos e geoestratégicos, uma maçada político/social e uma despesa que eles gostariam de poder passar a usar no seu circo político/demagógico para manter/alcançar o Poder. Numa palavra, os militares estavam a mais. A prudência, porém, não aconselhava, acções precipitadas, de grande visibilidade, ou radicais. O desaparecimento da IM teria que ser indolor e gradual para não provocar reacções menos controláveis.

O ataque a sério começou no primeiro governo do Prof. Cavaco Silva, com constrangimentos financeiros, em pessoal e administrativos. Nunca mais parou.

Por seu lado, a mais alta hierarquia militar, sempre a tentar recuperar do quadro atrás apontado e com uma cromossomática incapacidade em se entender e, por isso, em andar à frente dos acontecimentos (e alguma falta de coragem à mistura), passou a encaixar danos, a fazer “acções de retardamento”, a explorar falhas alheias e a esperar melhores dias.

Não tem sido suficiente, nem bonito de se ver.

Cumulativamente e aproveitando o resvalar da sociedade (comum ao chamado Ocidente), para veredas menos próprias em termos de valores dominantes e a falta deles, os políticos passaram ao exercício de desconstruir e sabotar a IM nos seus fundamentos.

Acabaram com o serviço militar obrigatório, um erro trágico em termos nacionais; quase acabaram com a Justiça Militar e fecharam os seus tribunais; tentam “civilizar” constantemente o ensino militar; deram uma machada terrível na disciplina, com a reforma do RDM; obrigaram ao fim de praxes e tradições; retiraram sistematicamente a possibilidade a militares do quadro permanente em ocuparem outras funções fora das FAs; restringiram, enormemente, a expressão pública por parte dos militares; durante décadas impediram que as FAs participassem nas festividades do Dia de Portugal; a escolha dos chefes militares passou a ser exclusivamente por critério político e retiraram-nos da escala indiciária dos vencimentos – ou seja, tentaram separar a cabeça do resto do corpo; retiraram, constantemente, competências à cadeia hierárquica e coarctaram a capacidade dos chefes defenderem os seus homens o que levou ao aparecimento de “Associações” que podem evoluir para sindicatos o que transformaria a tropa num bando armado sem qualquer valor militar; abriram-se as fileiras ao ingresso de mulheres, decisão perfeitamente demagógica e escusada cuja única consequência foi aumentar os problemas sem qualquer contrapartida em mais valias e, agora, pretendem acabar com o Sistema de Saúde Militar e com o Fundo de Pensões.

Enfim o rol de asneiras e malfeitorias é extenso e quase ininterrupto.

Pelo meio os órgãos do Estado descredibilizam-se pois não cumprem leis que aprovam (contam-se cerca de 40), fazem letra morta da Lei de Programação Militar, impedindo a modernização e o reequipamento; mudam de critérios a meio do jogo (por exemplo as condições relativas a contratados), inventam engenharias financeiras que resultaram no “case study” dos submarinos e passaram a obrigar os militares, que faziam gala em ter as suas contas sempre certas e a honrar compromissos, a entrar na bandalheira do Estado que não paga a horas e faz dilações nos compromissos.

Resultou de tudo isto para as FAs uma impossibilidade de gerir o seu pessoal, dar carreira condigna seja a quem for, incapacidade para reter especialistas em várias áreas; mal-estar; desmoralização; obter adequados níveis de instrução e treino; exiguidade de equipamentos modernos e impossibilidade da sua manutenção adequada; inexistência de um mínimo de factores estáveis de planeamento; falta crítica de munições; esgotamento de stocks e inexistência de reservas de guerra.

O dia a dia das unidades degradou-se. Os laços de disciplina estão relaxados, fecha-se os olhos a uma quantidade de coisas e deixou-se de cumprir uma elevada soma de procedimentos que são o ABC de qualquer IM que se preze e estão inventados desde o tempo dos Romanos.

Enfim, havendo dificuldade de recrutamento, especialmente para praças no Exército – apesar dos quantitativos diminutos necessários! – existe uma falta de informação terrível sobre quem se recruta. Nem um registo criminal se consegue e durante a instrução um instrutor que se distraia e “grite” algo mais alto a um instruendo, arrisca-se a que o mesmo se queixe dele e chame um advogado. Parece que é tudo contra os direitos humanos!...

A situação é insustentável e ninguém está para aturar isto.

Falta um pouco de tudo e está tudo preso por fios.

Querem que diga mais?

Pois vou dizer. Numa local do Correio da Manhã que deu a notícia, lia-se: “muitos dos militares retidos no quartel têm outros empregos, estão no Exército em regime de contrato. E ontem estavam revoltados porque não podem ir trabalhar nem estar com a família”.

Tirando a demagogia da notícia, e a ser verdade o relatado, é gritante a falta de preparação dos militares e a sua interiorização da condição e do dever militar. Ter outro “trabalho” carece de autorização e nunca pode ser invocado face ao serviço e que este também prefere à família. Ou seja estaríamos perante uma situação de autêntica “peluda”!

Perante todo este cenário que descrevi e que é real, perguntar-se-á porque é que a cadeia hierárquica não actua.

Bom, há de tudo um pouco a saber: por receio de verem as suas carreiras prejudicadas; por cansaço de verem as suas informações ignoradas; por não haver informação/feedback; por não se querer encarar a realidade; por sentimento de impotência; não quererem ser portadores de más notícias, por... Procure-se na natureza humana e descobre-se. A nível superior, ainda, porque as chefias políticas têm a autoridade de despedir um chefe militar e mandá-lo para casa com uma mão à frente e outra atrás, o que não tem paralelo em mais nenhuma profissão e porque, não querem tomar algumas decisões (desejadas pelos políticos mas não assumidas) de fechar unidades ou diminuir capacidades, que sabem não irem recuperar jamais.

Por tudo isto, caros leitores, nós não temos de nos admirar do que aconteceu nos Comandos. Face às barbaridades cometidas nós só temos de dar graças, por as coisas, apesar de tudo, terem corrido tão bem!

Mas podem deixar de correr.

1 comentário:

Medina da Silva disse...

Caro camarada, mais uma vez brilhante.Parabéns. Abraço. Medina da Silva (Ten.Cor.)